O Combate entre a Terça-Feira Gorda e o Jejum

André Pimenta
3 min readMar 29, 2021

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Visto que não tivemos Carnaval neste ano de pandemia, me pergunto se é justo haver Quaresma. Afinal, ambos não tiveram a chance de travar seu tradicional torneio…

“O Combate entre a Terça-Feira Gorda e o Jejum” é uma pintura de Pieter Bruegel de 1559 que retrata um confronto simbólico entre a Quaresma e o Carnaval*. A pintura é parte da coleção do museu Kunsthistorisches em Viena, Áustria.

*O Carnaval tradicional era a época dos excessos alimentares (principalmente da carne) antes do início do jejum imposto pela Quaresma. O Carnaval contemporâneo estaria, neste caso, mais relacionado com as Calendas de Janeiro: https://www.facebook.com/decopepper/posts/2924490731163359

O gozo e a observância religiosa, duas faces do cotidiano da época nos Países Baixos, são evidenciados pela estalagem do lado esquerdo e a Igreja ao lado direito. No centro há um poço que aproxima ambos os aspectos da comunidade, em que encontramos a figura do Senhor Terça-Feira Gorda a da Senhora Jejum. Tanto ele como a Senhora Jejum carregam na cabeça um atributo absurdo que deixa claro que são personagens alegóricos: no Carnaval é uma torta de frango, na Quaresma uma colmeia — símbolo comum para a Igreja na época. Um jovem agita uma bandeira vermelha-amarela-branca, cores típicas do carnaval da época.

O Senhor Terça-Feira Gorda.
A Senhora Jejum

Este tema tem raízes literárias. No século XIII, o poema “La Bataille de Caresme et de Charnage” ilustra uma batalha de alimentos (carne contra peixe) em que o Carnaval, com a ajuda do Natal, sai vitorioso contra a Quaresma.

Os retóricos recitavam variações deste tema nas vésperas da Quaresma. A peça “A Quaresma e a Aventura do Jejum” até mesmo inseria os próprios convidados de um banquete na encenação: enquanto comiam waffles e panquecas à convite do Carnaval, eram perturbados pela Quaresma, que fazia barulhos do lado de fora do recinto. Quando a Quaresma era admitida, um debate sobre tais excessos se desenrolava. O Carnaval prevalecia e a farra podia continuar, mas a Quaresma era a vencedora moral: no dia seguinte todos teriam que obedecer às suas leis.

A pintura é muito detalhada e simbólica. Destaco nas legendas das imagens algumas informações que se relacionam com o tema dos foles e da folia.

Um bobo-da-corte a caminhar
Três figuras no centro também se destacam: um casal segue um fole que carrega uma tocha acesa em um dia claro. Todo o absurdo retratado está na atmosfera da época: a briga entre católicos e protestantes, que haviam abolido a Quaresma porque, em sua opinião, nem o arrependimento, a abstinência nem as boas obras justificam as pessoas diante de Deus, mas apenas a fé.
Os mendigos da direita chamam a atenção dos fiéis. No entanto, as aparências enganam: uma peregrina, mas na cesta em suas costas está um macaco, o que indica farsa.
No fundo, um grupo de atores encena “A Captura do Homem Selvagem”. Veja o Baile dos Ardentes: https://www.facebook.com/decopepper/posts/2941353199477112
Em frente a pousada, atores encenam uma farsa “A Noiva Suja”, também popular no Carnaval. Nela, um fazendeiro bêbado concorda em se casar. No dia seguinte, mais sóbrio, descobre como sua noiva é suja. Bruegel mais tarde reprisou a mesma cena em xilogravura com o verso latino de Virgílio: “Se Mopsus se casar mesmo com Nisa, o que não devemos esperar do amor?”.
No canto inferior esquerdo temos, acima da assinatura do pintor, duas figuras a jogar dados. Uma está mascarada e a outra é um vendedor de Waffles. Isto ilustra a prática de oferecer, sob anonimato, um jogo de azar a foliões desavisados que eram claramente trapaceados.
A placa da pousada contém a inscrição “Dit is in d blau schuyt” e refere-se a um poema holandês que era popular nas celebrações da Terça-Feira Gorda e no qual o mundo burguês fica de cabeça para baixo. Próximos a ela vemos um encontro entre dois amantes. Ao lado deles há um músico com sua gaita de foles a vomitar. A forma do seu instrumento sugere sexualidade.
Na janela da padaria há uma figura de aspecto humano que tem uma boa visão da praça do mercado. Pode ser um boneco/efígie das Calendas de Janeiro, que deveria ter sido queimado ritualisticamente no início do ano. Veja Calendas de Janeiro: https://www.facebook.com/decopepper/posts/2924490731163359
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André Pimenta
André Pimenta

Written by André Pimenta

Writing a historical fiction about power and madness at the golden age of folly in 1470’s Flandres.

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